O pediatra Juarez Cunha entrou na rede pública de saúde de Porto Alegre em 1985 e participou dos esforços finais da eliminação da poliomielite no Brasil, doença que teve o último caso registrado em 1989 no país. Durante 15 anos atuando na ponta, em uma unidade de saúde pequena na periferia, ele conta que tinha uma equipe unida e engajada na imunização.
“Era um grupo de concursados, todos funcionários públicos do município, que construíam suas carreiras ali. Fiquei durante muito tempo em unidade de saúde, depois fui trabalhar em programas de vigilância, e depois com mortalidade infantil”, lembra o médico, que se aposentou na carreira de servidor público e atua como consultor e diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). “As vacinas me acompanharam em todos os 43 anos de profissão”.
A presença de trabalhadores experientes, entretanto, não é mais a regra nas salas de vacina no Brasil. A alta rotatividade de profissionais nesses postos de trabalho está entre os problemas apontados por especialistas que avaliam as causas da queda nas coberturas vacinais. As dificuldades se agravam com a complexidade cada vez maior do calendário vacinal, que chega a ter 20 vacinas atualmente, e com a crescente insegurança espalhada pelos grupos de pessoas que são contra vacinas, os antivacinistas, nas redes sociais.
“A sala de vacinação ficou uma área da unidade de saúde que tem uma demanda muito grande de formação, de rotinas. Se você tem uma alta rotatividade, isso atrapalha muito a performance desse local”, avalia Cunha.
“Quando a gente inicia com o PNI na década de 1970, a gente tinha BCG, pólio oral, tríplice bacteriana e sarampo. Eram quatro vacinas. E o registro era manual. Atualmente a gente tem uma quantidade muito grande de vacinas ofertadas e tem que alimentar os sistemas do Ministério da Saúde. E tem que ter toda a responsabilidade pela rede de frios, para que as vacinas sejam adequadamente conservadas. É um trabalho que se tornou bastante complexo”.
Lidar com toda essa logística e com as rotinas corretamente requer uma capacitação sólida, que é prejudicada quando ocorre a troca constante dos profissionais responsáveis pela vacinação. “A alta rotatividade tem diversos motivos, inclusive desvalorização dos profissionais, terceirização. A gente acaba tendo uma alta rotatividade, o que é péssimo. Quando as pessoas estão capacitadas ou seguras do que estão fazendo são deslocadas para outros locais e atividades. Isso interfere na performance das coberturas vacinais”.
Carreiras
Integrante da coordenação de epidemiologia da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Maria Rita Donalisio diz acreditar que esse é um problema sério a ser enfrentado para a retomada das altas coberturas vacinais.
“Com tanto investimento na produção de insumos nacionais, com o ministério garantindo a continuidade dos fluxos, garantindo a cadeia de frios, mas chega na ponta, a gente não garante a qualidade”.
A médica defende que é com o fortalecimento da atenção primária que é possível garantir a melhora desse serviço e a integralidade do cuidado. Em vez disso, ela vê uma priorização a atendimentos eventuais de casos agudos, como em unidades de pronto atendimento, onde as possibilidades de conferência da caderneta de vacinação, por exemplo, são muito menores.
“É preciso investimento em carreira, estabilidade, concurso público, para que esses profissionais possam ser treinados e cada vez mais adquirirem experiência e serem referência na vacinação. Investir nos profissionais, por meio de concursos e carreiras, por meio de remuneração justa, é investir no SUS e no PNI”, afirma.
“Não é fácil conferir uma caderneta de vacinação. É uma tarefa complexa e que precisa de treinamento”, conclui.
Insegurança
A enfermeira e diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) Mayra Moura trabalha com a capacitação de profissionais da ponta, incluindo os da sala de vacina. Além da dificuldade de gerir o trabalho em si, ela acrescenta que profissionais pouco experientes ou mal capacitados também não transmitem segurança à população, que cada vez mais busca os postos de saúde com dúvidas espalhadas na internet.
“Se você não responder às perguntas das pessoas, e se você não acredita ou não tem segurança do que você está falando, a gente perde a oportunidade, deixa aquela pessoa ir embora e reduz a adesão da população”, afirma. “Essa rotatividade [de profissionais] é um problema crônico. O tema vacina é um tema complexo. Não que seja difícil, mas exige estudo, exige dedicação, exige tempo. E a formação desses profissionais dedica um tempo pequeno perto do que é preciso. A grande maioria sai de um curso técnico ou de uma faculdade com um conhecimento raso e básico. E quando vai trabalhar na sala de vacina precisa se capacitar. Leva tempo até ele ter prática suficiente para bater o olho em uma caderneta de vacinação e saber o que tem que fazer. Com a rotatividade, ele não tem esse tempo”.
Mayra Moura afirma que a necessidade dessa capacitação mais aprofundada também acaba afastando profissionais como técnicos de enfermagem, que muitas vezes precisam ter mais de um emprego e não dispõem de tempo para estudar o suficiente. A valorização dessas carreiras, portanto, é um caminho para melhorar a qualidade do serviço nas salas de vacina.
“Essa já é uma luta principalmente da enfermagem, com o piso salarial, que já é tentado há mais de 20 anos. Para que a gente consiga ter uma dedicação melhor ao trabalho dele e não precise ter dois ou três empregos para se sustentar. E, com isso, teria tempo para se dedicar. E a valorização não é salarial. A valorização passa por capacitação também. Passa por enxergar que o profissional precisa de uma capacitação, de uma supervisão, que precisa de atualização. Não adianta capacitar e cinco anos depois a pessoa ainda não ter uma atualização”.
Desafio
A fixação de profissionais na atenção básica é uma necessidade que está no radar do Ministério da Saúde, que tem entre suas linhas de ação o próprio programa Mais Médicos. Em entrevista à Rádio Nacional da EBC, a ministra Nísia Trindade classifica como fundamental o papel dos profissionais da ponta, que são aqueles que fazem a vacinação acontecer.
“Isso só é possível com profissionais qualificados. Sabemos que, em muitas áreas, essa rotatividade é maior, o que aumenta a nossa responsabilidade para ter planos de fixação dos trabalhadores no Sistema Único de Saúde, apoiar municípios nessa iniciativa. Temos feito isso, mas sabemos que o desafio realmente é enorme. E, principalmente, trabalhar com plano focado em educação em campo, em formação em campo.
Além da sala de vacina, a ministra sublinha também a necessidade de capacitação dos agentes comunitários de saúde e agentes de endemias, que vão a campo aumentando a capilaridade do Programa Nacional de Imunizações e do Sistema Único de Saúde.
“Nós apoiamos a formação de agentes comunitários de saúde e agentes de endemias, e agora já vamos apoiar uma segunda turma pelo Ministério da Saúde. A lei que os considera profissionais de saúde foi sancionada pelo presidente Lula no início da gestão. E, com isso, nós esperamos envolver não só esses profissionais, mas os profissionais da enfermagem, que são centrais nesse processo de avançar nessas ações de prevenção e promoção da saúde”.
Fonte: Agência Brasil