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E DAI? (RELATO DE UM ATENDIMENT​O NO HOSPITAL DE BASE)

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Na sexta-feira, dia 28 de janeiro de 2011, meu filho mais novo, Rodrigo, fazia uma trilha numa cachoeira próxima de Brasília: Poço Azul. Ele estava com um colega e sofreu uma queda de uma ribanceira de mais ou menos 20 metros. Por iniciativa do amigo, depois de fazer o socorro imediato e tentar estancar o sangue – ele sofreu vários cortes na cabeça e no rosto – além, de pedir que se mantivesse acordado – Rodrigo teve perda de consciência por alguns minutos – acionou o resgate do corpo de bombeiros. Aliás, faço uma ressalva, os bombeiros integram uma corporação que merece muito respeito. O resgate foi rápido e feito por helicóptero, tendo em vista que ele caiu em local de difícil acesso. Rodrigo foi levado para o Hospital de Base de Brasília. E nosso drama começou.

Fomos avisados sobre o acidente depois que ele já estava no hospital recebendo atendimento. A mãe do amigo que o acompanhava veio à nossa casa e deu a notícia. Eu, que me recupero de uma cirurgia recente, fiquei absolutamente em choque. Fomos para o HBB e meu marido foi o primeiro a vê-lo. Resumo da ópera: Rodrigo tinha o rosto muito machucado – recebeu suturas em vários pontos – e estava deitado na maca do resgate, totalmente imobilizado, pois sofreu uma fratura no pescoço.

Não foi fácil ver meu filho naquelas condições, mas coração de mãe vira aço nessas situações. Antes de entrar, Helvécio, meu marido me alertou: “Ana, ele está bastante machucado e, além disso, dentro do hospital parece uma praça de guerra.” Não era uma figura de linguagem. Havia macas espalhadas por todos os lados, pessoas em bancos e no chão. A primeira surpresa aconteceu no Raio X. Terminados os exames os atendentes me entregaram várias imagens e me mandaram empurrar a maca até o Box de emergência. Lá, três residentes (acho) fizeram as suturas, avaliaram as imagens e disseram que ele teria que passar por uma avaliação neurológica. Nesse momento fui retirada da sala, pois chegara um paciente que se debatia muito, pois fora atropelado.

Aguardamos pelo atendimento do neurologista. Foi constatada uma fratura na coluna cervical, mas aparentemente não havia comprometimento da medula. Ele tinha os movimentos de pernas e braços e estava lúcido. Durante todo o tempo que ele permaneceu no meio de uma passagem, nenhuma, ressalto, “nenhuma” enfermeira fez qualquer tipo de procedimento. Os médicos falavam conosco apressadamente e depois de enorme insistência – argumentamos que gostaríamos de removê-lo para um hospital da rede privada – eles disseram que só autorizariam a remoção por ambulância e que teríamos que acionar nosso convênio e tomar as providências.

Rodrigo queixava-se, pois desde o momento do resgate estava na maca de madeira, fazia calor, e havia muita terra. Ele sentia dores nas costas, não conseguíamos ter informação se ele podia beber água – ele tinha muita sede – e nenhuma medicação foi ministrada para a dor. Por fim, não saberia dizer depois de quanto tempo, os médicos fizeram um laudo de liberação e ficamos abandonados à própria sorte.

Helvécio corria de um lado para outro para providenciar a remoção enviando ao convênio as informações solicitadas e eu, bem, eu tentava compreender como era possível receber tratamento em meio ao caos.

A maca do Rodrigo estava posicionada em frente à de um menino de 10 anos: Vaílson. A mãe da criança foi uma pessoa incrível. E me fez ver o drama muito maior que o nosso. Vaílson aguardava há três dias por uma cirurgia, para remover um caco de vidro dentro do olho. Desde que chegaram ao HBB, mãe e filho esperavam, sem comida, sem higiene, sem atenção. Foi ela que nos instruiu sobre como viver naquele ambiente caótico. Foi ela que nos disse que para a sede, devíamos ir buscar água. Ninguém traria. Foi ela quem me ajudou a conter a revolta do Rodrigo, que não suportava o desconforto da maca e procurava uma posição para aguardar. Quando ele precisou fazer xixi, solicitei a uma enfermeira e ela limitou-se a me entregar um saco plástico sem dizer uma palavra e sequer levantar os olhos. Então, um rapaz que acompanhava a mãe, vendo nossa dificuldade, procurou um lençol de uma paciente que recebera alta e com uma voz extremamente carinhosa disse: “amigo, você não pode ir ao banheiro daqui. É muito sujo. Faz o seguinte: nós vamos improvisar uma cabaninha com o lençol e você faz o xixi. Não fica com vergonha, pois todos têm que passar por isso”. E assim, foi.

O fato mais absurdo se deu quando confrontei o médico solicitando que prescrevesse uma medicação para dor. Quando fui falar com ele, virou-me as costas e me deixou falando sozinha. Fui atrás. Ele disse: “Traga o prontuário”. Nele fez a prescrição e me mandou até a sala de medicação. Sai pelo hospital à procura desse local. Percorri vários corredores e mais gente jogada pelo chão. Quando encontrei o local, duas enfermeiras conversavam animadamente. Falei: “Por gentileza, o médico prescreveu essa medicação para meu filho”. Mostrei o prontuário – e uma respondeu: “E daí”?! Diante da minha perplexidade ela reformulou: “como assim”? Expliquei que meu filho estava numa maca e sentia dores e precisava da medicação. E ela: “ah! Tá. Então, traz ele aqui.” E lá fui eu empurrando a maca por todo o percurso para que ele recebesse a medicação. Um absurdo!

Não sei se vocês ainda têm paciência para esse relato, mas a primeira coisa que vi quando cheguei ao Hospital de Base foi um cartaz com os dizeres: “Gentileza gera gentileza”. Como assim? Quem não sabe o significado disso, pois gentileza é tudo que não vi naquele lugar por parte dos profissionais que lá atuam. Por outro lado, nunca havia visto tanta solidariedade vinda de estranhos. Pessoas simples, sofridas e que ao contrário de nós, que felizmente saímos de lá, porque temos uma alternativa, estão passando por humilhação constante e sem horizonte.

Como explicar que um centro de saúde – penso que é o maior hospital público da Capital Federal – possa tratar as pessoas daquela maneira? Como permitir que uma criança fique sem alimentação por três dias e adiem a todo instante a intervenção a que deverá submeter-se? Minha amiga Solange comprou sucos, bolachas e iogurtes e não me deixaram entrar com as sacolas. Pois é, lá só permitem a entrada da falta de bom senso e de humanidade. Os guardas da portaria filtram a entrada de visitantes, mas as pessoas que não podiam entrar são funcionários despreparados, insensíveis, incapazes de falar com as pessoas que estão ali para receber o atendimento para os quais esses profissionais foram contratados. E não me digam que os salários são injustos, que têm jornadas estafantes. Eu assisti “Tropa de Elite” e sei – não por conta disso – que o “inimigo” está numa posição acima. Sim, a culpa disso é do Estado, ineficiente, cruel, criminoso. O que vi naquele hospital fere, com certeza, todos os direitos. Direitos humanos, do consumidor, do paciente, todas as categorias de direito. Mas sai de lá. Foram horas tentando, mas sai. E os que ficaram?

Burlando a segurança, enfiei a comida que a Solange trouxe e dei para a mãe do Vaílson. Quando ela lhe deu o iogurte, ele dormiu. Deus! Meu coração saiu pela boca. Ela me disse: “filha, estamos aqui há três dias com essa roupa e é a primeira vez que como alguma coisa”. E independente da indigência, todo o tempo ela sorria e tentava me animar. À medida que as pessoas iam sabendo meu telefone tocava a todo instante eu chorava pelo carinho da família, pela corrente de orações que se constituiu para que o Rodrigo pudesse sair dessa e todo o tempo era consolada pelas pessoas à volta, que me contavam suas histórias: acidentes de moto, atropelamentos, quedas, uma variedade. E todos tinham a mesma queixa: ninguém lá se importa com eles.
Do outro lado, Helvécio enfrentava outra chaga: a burocracia dos planos de saúde.

Perto da meia noite convencemos o médico de que levaríamos o Rodrigo sem a ambulância. E ele, que antes não queria autorizar, concordou e pediu que meu marido saísse para comprar um colete cervical para proteger o pescoço. Àquela hora, não encontramos e decidimos correr o risco. Então, ele pediu que o hospital fizesse. E lá fomos nós, empurrando a maca, esperar de frente da sala de gesso que improvisassem a proteção. Mais tempo, mais desgaste, mas falta de atenção.

Por fim, saímos daquele inferno. Rodrigo foi removido para o Hospital Santa Luzia. Lá, sentimos como se tivéssemos saído de um pesadelo em direção ao céu. Atendimento impecável. Exames decentes. Os exames feitos no HBB eram precários, as imagens eram da pior qualidade, os membros estavam mal posicionados e não mostravam com clareza a dimensão do problema. Mas tudo foi resolvido. Os médicos nos explicaram, em detalhes, os resultados. Ele já está em casa. Terá pela frente uma longa jornada de tratamento, mas está vivo. Está se movimentando. Por mais sofrimento que tenhamos tido, na expectativa do resultado, sabíamos que teríamos a ajuda da família e dos amigos e a retaguarda do convênio. Nossa preocupação e o motivo do desabafo são as pessoas que deixamos para trás. Os anônimos que continuarão na indigência. Mas como diria aquela enfermeira: “E daí”?

Eu espero que os responsáveis pelas políticas públicas de saúde tenham a decência de reverter ou atenuar a situação. E espero que – e não me julguem mal por isso – os funcionários daquele hospital ou seus familiares experimentem a cortesia dispensada aos que passam por aquela emergência. Só assim, creio, a humanidade lhes seja devolvida.

A partir de agora, além de pedir nas minhas orações pela minha família e pelos meus amigos eu pedirei, com toda convicção, pela legião de anônimos que sofre naquele e em dezenas de outros hospitais.

Ps. Antes de encerrar, é preciso fazer justiça, já que como diria Nelson Rodrigues “toda unanimidade é burra”. Eu completaria dizendo que também é parcial. É preciso dizer que além dos pacientes, a Dra. Rose, chefe da emergência (não tenho certeza), uma senhora de nacionalidade latina, nos tratou com cortesia e educação.
Agradeço mais uma vez a paciência de quem chegou até aqui.

Um abraço.
Ana Maria Monteiro

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